Festivais de música cancelados e adiados: o que está acontecendo?

O setor de entretenimento vem passando por diversos desafios desde que voltou a funcionar após a pandemia da COVID-19. No universo dos festivais de música, em quatro anos, vimos o encerramento das atividades de muitos festivais, seguido pelo boom de festivais em 2022.

Ainda em desdobramento, estamos passando pelos desafios estruturais causados pelas mudanças climáticas, o que parece ser mais um obstáculo na produção de festivais independentes, adiamentos e cancelamentos sistemáticos de festivais de música.

Reunimos os primeiros números de 2024 sobre festivais que tiveram datas anunciadas e posteriormente canceladas ou adiadas e também festivais que não anunciaram ainda as suas datas.

A partir de depoimentos de realizadores e de notas oficiais divulgadas nas redes sociais, levantamos algumas hipóteses e movimentos para prestarmos atenção nos próximos anos.

Até a primeira quinzena de maio, 18 festivais de música alteraram sua data de realização. Desses, oito foram cancelados, nove adiados e um festival teve 1 dos seus 2 dias de evento cancelado. 

Nove festivais anunciaram a data e depois foram cancelados, entre eles o internacional Africa Express (SP), com nomes como Damon Albarn, Imarhan e Luedji Luna, e que faria sua primeira edição no Brasil em fevereiro de 2024. Além dele, Límbico Festival (SP), Mirante Roots Festival (MG), Rap Game Festival (GO), Samba & Sofrência (BA) , XXXPERIENCE (SP), Nova Iguaçu Fest (RJ) e o Doce Maravilha Curitiba (PR). Magnólia em Chapecó (SC) teve o cancelamento parcial de um dia de sua programação.

Em relação a eventos adiados, que ainda vão acontecer em outras datas, foram mapeados nove festivais: Flow Festival (SC), Encontro das Tribos (SP), Whatz Pop Festival (BA), Recife Trap Festival (PE), Rap Game Festival (MG), Rep Festival (RJ), Ibitipoca Music Festival (MG), Prime Rock Festival Porto Alegre (RS) e o Turá Porto Alegre (RS), esses dois últimos adiados devido à catástrofe climática no Rio Grande do Sul. Alguns deles já anunciaram novas datas, seja em 2024 ou em 2025.

Temos ainda festivais que vinham acontecendo nos últimos anos e até o fechamento desta matéria, ainda não tinham anunciado suas datas para 2024. Alguns deles: Breve (MG), Sonido (PA), Arvo (SC), Piauí Pop (PI), Popload (São Paulo) , Festival Girassol (PI), GRLS! (São Paulo), MECAFestival (vários estados) e MITA (SP). No caso do MITA, a produtora anunciou uma pausa.

Temos também adiamentos estratégicos, como o caso do Carambola, festival de Maceió (AL) que será realizado pela primeira vez em novembro.

“O núcleo criativo do Festival Carambola decidiu por mudar a data de realização do evento tanto para evitar chuvas e estimular o turismo cultural, quanto para viabilizar a captação de patrocínios e aproveitar os festivais do nordeste que também acontecem no mês de novembro, facilitando o intercâmbio entre bandas e o rateio de logística.” – Lili Buarque, diretora do Festival Carambola.

Não são só os festivais que vêm sofrendo com adiamentos e cancelamentos. Recentemente também tivemos os casos de grandes turnês nacionais canceladas como Jão, Ivete Sangalo e Ludmilla que, apesar dos artistas responsabilizarem a produtora responsável pelas turnês pelo cancelamento, alguns dos motivos são comuns aos dos adiamentos dos festivais que aprofundaremos a seguir.

Um dos principais motivos apontados pelos organizadores de festivais cancelados ou adiados é o alto custo de produção e a baixa na venda de ingressos. Estamos há 2 anos acompanhando o que chamamos de boom de festivais e já prevíamos que, a longo prazo, esse movimento poderia não ser sustentável.

Comunicado de adiamento do festival Encontro das Tribos 2024 | Imagem: Divulgação Instagram

Depois de 2 anos com muitos novos festivais no calendário nacional, só em 2023 o Mapa dos Festivais mapeou 71 festivais de primeira edição e esse ano já contabilizamos 31, além de ter meses com alta incidência de eventos, como mostra o nosso estudo, parece que a bolha estourou. 

 “Estamos em um momento que muitas agências de marketing passaram a ter festivais como produtos em seu escopo de atuação. Isso impacta muito em todo o ecossistema musical, pois a premissa básica é a promoção das marcas. A música tá ali quase como pano de fundo” – Sara Loiola, Presidenta da ABRAFIN.  

Somado a grande oferta de festivais, “está tudo caro!”. Ouvimos isso em todos os lugares. O custo de vida global aumentou muito nos últimos anos, com a economia mundial ainda se recuperando da pandemia. Só no nosso país a inflação está por volta de 4% ao ano.

Não tem como essa realidade não afetar o mercado de festivais. Nos últimos anos, enquanto nos reunimos em massa após dois anos da pandemia, o setor de eventos foi um dos primeiros a sentir como a rápida inflação, a recuperação pós COVID-19 e a mudança nos padrões de consumo do público impactariam a indústria musical e o resto da sociedade. Passado o boom, agora o público brasileiro passa a ter que escolher entre um evento ou outro.

“Temos muitos festivais e turnês nacionais e internacionais muito bem sucedidas e com ingressos esgotados e isso até dá uma sensação de que tudo vai bem. Mas a realidade é que o público não tem renda que possibilite bancar vários eventos dessa oferta em abundância que estamos vendo hoje, principalmente no sudeste. Com a grande oferta, o público é pulverizado e com a baixa demanda o evento não se mantém.” – Juli Baldi, diretora criativa do Mapa dos Festivais

O aumento de custo não se deu somente no bolso do consumidor, a produção de festivais também se tornou ainda mais cara depois da pandemia. Entre os itens caros mais comentados entre os organizadores estão a parte de logística e infraestrutura do festival, o preço das passagens aéreas e os cachês artísticos. 

“Enquanto produtora de um festival localizado no Nordeste do Brasil, entendo que a logística também é algo de extrema importância para a organização de eventos por aqui. Os custos de passagens aéreas aumentaram demais e se fez urgente repensar na sustentabilidade dessas locomoções. Possivelmente mudanças em diversos festivais ocorreram pensando em como fechar as contas, mas sem perder a vitalidade e a proposta conceitual de cada um.”, comenta Lili Buarque – Festival Carambola.

A organização do Festival XXXPERIENCE comentou em seu comunicado oficial de cancelamento da edição de 2024 que “a impraticável bolha que assombra o mercado artístico com cachês estratosféricos em uma época de dólar nas alturas e economia fragilizada, foram determinantes para a decisão”.

Bem, para quem produz festivais de música, esse problema não é nada novo. Além dos patrocínios estarem centralizados na região Sudeste do país, os patrocinadores se concentram em festivais superstars (com público maior que 80 mil pessoas).

Festivais descentralizados sofrem para convencer as marcas que a riqueza cultural do Brasil precisa ser defendida e que, não apostar nisso, é ignorar uma grande oportunidade de posicionamento de marca.

“​​Falta a visão dos patrocinadores de entenderem a importância desse festival nessa cidade. Sobrando pra gente entender como trabalhar o que a gente sempre fez, entendendo que para o patrocinador talvez o interessante já não seja mais a fomentação e sim movimentação de público” – Marcelo Damaso, Se Rasgum/Festival Sonido

Ainda segundo o Marcelo, como o festival trabalha com o artigo 18 da Lei Rouanet, que é a isenção de 100% no Imposto de Renda do patrocinador, teoricamente, seria mais fácil captar os recursos necessários para a realização do festival. Mas não é o que acontece.

“Mas é incrível a gente estar indo para a sétima edição, que seria a nona, se não fosse a pandemia, enfrentando esse tipo de dificuldade de patrocínio, sabe? São coisas que deixam a gente com a impressão, com a certeza, de que falta realmente um olhar mais atento para o que se tem feito de cultura aqui.”, comenta Marcelo sobre a região Norte do país.

Captação de patrocínio direto e também via leis de incentivo à cultura muitas vezes não são suficientes para a conta fechar. A ABRAFIN, Associação Brasileira de Festivais Independentes, também encabeça uma série de ações frente ao governo que vão além das leis de incentivo já estabelecidas:

“Desde a retomada da Abrafin, temos feito articulações com os governos mostrando a importância dos festivais para a economia criativa em seus territórios. Na pandemia, como estávamos sem o Minc, articulamos com o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura a inserção dos festivais na Lei Aldir Blanc. Apresentamos um modelo de edital que foi replicado em vários estados e municípios. No final do ano passado, tivemos uma agenda com a Ministra Margareth Menezes e na ocasião falamos sobre a importância da criação de uma política pública estruturante para os festivais e a formulação de um plano plurianual na PNAB, pois há essa possibilidade. Também temos fortalecido os nossos festivais mais consolidados junto às administrações municipais para que entrem como eventos calendarizados. Isso já garante orçamento para esses projetos.” – Sara Loiola, presidenta da ABRAFIN. 

Não é só a alta demanda, a dificuldade da venda de ingresso e de patrocínio e os altos preços de estrutura que culminam no adiamento e cancelamento de um festival de música. Os eventos climáticos extremos são reais e cada vez mais comuns e vem para somar aos motivos.

Iniciamos o ano trazendo uma perspectiva sobre o mercado de festivais brasileiro frente às mudanças climáticas. Dos nove festivais adiados, quatro foram devido a chuvas fortes em seus territórios: Prime Rock Porto Alegre, Turá Porto Alegre, Ibitipoca Music Festival e Rap Game Festival BH.

Gabriel Cevallos, diretor do Festival Avante em Porto Alegre, lida com as mudanças climáticas desde a primeira edição do festival em 2023, onde o festival foi afetado pelas mesmas chuvas que aconteceram no estado de maneira mais forte agora em Maio de 2024. Foi necessário transferir o festival de local do Parque Marina Navegantes para a Zona Norte na cidade, além de transferir um dos dias de um dos pré-eventos por conta das fortes chuvas.

“Um festival do tamanho do ano passado, com a catástrofe que vive Porto Alegre, acho que é muito difícil acontecer. Mas algum evento que deixe a marca acessa, possivelmente vai acontecer. Neste momento mudou tudo, não temos mais previsão de mais nada na cidade, nenhum evento. Tá totalmente incerto, mas alguma coisa vai sair, só não sei o tamanho.” 

Gabriel também ressalta que se torna cada vez mais necessário modelos de produção de festivais considerando a mudança climática.

“Acho que a gente vai ter que aprender a montar o circo de uma forma que possa ser transferido [de local] e rever as relações com passagens aéreas. A gente vai ter que achar mecanismos de garantias de transferências sem perdas ou sem perdas completas. Entramos numa era em que os cancelamentos em relação ao clima vão ser totalmente normais e isso vai precisar estar no planejamento e orçamento prévio, deixar um orçamento separado para estes momentos. Novas formas de produção vão ter que ser pensadas na velocidade dessas mudanças. 

O artigo da Mixmag comenta uma tendência que também observamos no Brasil: estamos deixando para comprar o ingresso para o festival no último minuto, o que é fatal para a organização do festival, principalmente para os de pequeno e médio porte.

As vendas são abertas muito tempo antes do evento por um motivo: para se comprometer e garantir a segurança e infraestrutura adequada para que o público tenha a melhor experiência, é essencial ter uma previsão de venda de ingressos. Todos esses custos ficam ainda mais altos conforme a proximidade da realização do evento vai aumentando.

Então, se você quer ajudar o festival, principalmente o independente que acontece na sua cidade a se manter vivo, se possível e dentro das suas possibilidades financeiras, compre o ingresso antecipado. Muitas ticketeiras oferecem a opção de parcelamento no cartão de crédito, que podem te ajudar nessa decisão.

Podemos pensar que é natural que o mercado passe por uma readequação e indique quais produções tem as condições necessárias e o apelo para continuar operando. A realidade é que temos uma desleal concorrência de grandes festivais com altos investimentos disputando a compra do ingresso do público com pequenos e médios produtores. 

Há visivelmente uma má distribuição de festivais pelo país. Enquanto a região sudeste transborda de eventos, outras capitais e interiores do Brasil são carentes de determinados tipos de festivais que podem ser muito potentes se adaptados para a realidade de cada região. 

“A quantidade de festivais não chega a ser um problema para uma realidade como a de Porto Alegre, onde não existem tantos festivais como no resto do Brasil. Mesmo com a chegada de grandes festivais aqui, a cidade era carente de um festival com esse recorte que o Avante apresenta” – Gabriel Cevallos, diretor do Avante (POA).

Globalmente estamos vendo sinais de fadiga até para o Coachella, que pela primeira vez em 10 anos não teve os ingressos esgotados nos primeiros dias de venda. No Brasil, o público do Lollapalooza 2024 foi menor que 2023 e o início das vendas da edição de 40 anos do Rock in Rio foi postergada. 

A saturação cobra um preço e a tendência é que muitos festivais desapareçam ou aceitem se adaptarem à nova realidade para continuar existindo: diminuir de tamanho, repensar o formato, deslocar o evento para uma melhor data e repensar o lineup e a experiência que oferecem ao público. 

Festivais são inovadores por natureza e chegou a hora de além de inovar, regenerar. Ou seja: trazer de volta algo que foi perdido. A nova era dos festivais de música que estamos prestes a viver precisa ser de eventos com propósito além de lucro, que tenham a cultura como prioridade, que sejam palco e preparem artistas para serem os novos headliners do futuro, que sejam comprometidos com o respeito ao público e ao meio ambiente onde acontecem. 

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