Como os festivais de música impactam a crise climática?

Nos últimos anos, o público que frequenta festivais vem sentindo recorrentemente o efeito das mudanças climáticas nos eventos: festivais foram pausados ou cancelados devido a fortes chuvas, eventos tiveram que mudar de horário ou adotar ações de resiliência climática devido a ondas de calor e houveram até mesmo mortes devido a altas temperaturas.

Em outubro, fizemos uma pesquisa na nossa comunidade no WhatsApp para entender o quanto o nosso público está interessado em questões ligadas ao clima e descobrimos que mais de 90% do público acredita ser importante ou muito importante que os festivais tenham ações de diminuição de impacto ambiental

Além disso, metade dos participantes da pesquisa procura saber quais ações os festivais estão tomando para reduzir os efeitos climáticos ou deixaria de frequentar um festival que não tivesse nenhuma ação de redução de danos ambientais. 

No entanto, acreditamos que está na hora de olhar para essa situação com outra perspectiva: quais as consequências causadas por um festival no meio ambiente? A partir desse questionamento, entramos em outros como: de que forma reduzir esses impactos? Quais as melhores opções de acordo com a realidade de cada festival? E o público, há algo que possa fazer? 

Para solucionarmos essas dúvidas e entender como um festival pode se tornar sustentável, conversamos com a ativista ambiental Kamila Camilo e a especialista em sustentabilidade Laura Peiter. Vamos nessa?

Para dar início a essa conversa, vamos diferenciar resiliência climática e redução do impacto ambiental. Após os festivais e seu público sofrerem diretamente o impacto das mudanças climáticas, muitos começaram a se preparar e se adaptar a eventos extremos como fortes tempestades, ondas de calor, seca e inundações. Isso é resiliência climática, uma estratégia de adaptação que envolve várias ações. Entramos nesse tópico quando relacionamos mudanças climáticas e festivais pela 1ª vez.

Enquanto a resiliência climática tenta reduzir os danos do agora, a redução do impacto ambiental é uma prática que trata da raiz do problema, olhando para a influência do agora no futuro. Esse compromisso envolve ações como diminuir os danos que causamos ao meio ambiente, com ações como cortar as emissões de carbono, reduzir o uso de recursos naturais, diminuir a produção de lixo e evitar a poluição. São práticas essenciais para tornar um festival sustentável. Aqui, vamos explorar os desafios que tornam essa missão ainda mais complexa para eventos.

Uma pesquisa feita pela Brighton University apontou que os impactos ambientais dos festivais estão principalmente relacionados ao transporte, resíduos, energia e banheiros. 

O maior problema é a logística de transporte para o evento, que gera uma alta quantidade de carbono. Incentivar o uso de transporte público e caronas já ajudaria a reduzir essas emissões, por exemplo.

O lixo é outro grande desafio. As praças de alimentação representam uma grande parcela dos resíduos gerados em festivais, em alguns casos, até 40% do lixo total vem de embalagens e restos alimentares. 

A energia gasta também é imensa: grandes festivais consomem até 30.000 megawatts em um fim de semana, principalmente em iluminação e produção de áudio e vídeo. 

Banheiros e chuveiros ainda somam no uso de água e energia e o uso inadequado de áreas naturais pode prejudicar a vida local. 

Para entender melhor o que pode ser feito pelos festivais para reduzir os danos ambientais, conversamos com Laura Peiter, especialista em sustentabilidade e sócia da BM2B, empresa que fornece uma consultoria estratégica de ESG (Meio Ambiente, Social e Governança).

Segundo Laura, “hoje em dia, qualquer evento tem que pensar no evento lixo zero”. Isso significa ser um evento que vai reduzir ao máximo a geração de resíduos para, em seguida, reciclar ou reutilizar. 

Você tem que garantir que todo o resíduo gerado dentro daquele espaço vai para a reciclagem porque o resíduo não pode ir para o aterro. Se você não conseguir fazer um acordo de compostagem para o resíduo orgânico, que seria o ideal, o resíduo orgânico acaba indo para o aterro, que também é horrível, mas é mais desafiador (…) Quando você faz isso, você consegue garantir que, em termos de resíduo, o seu evento seja lixo zero.” – destaca Laura Peiter.

Existem três tipos de emissões de carbono que uma empresa ou um evento, por exemplo, podem gerar. São chamados de escopo 1, 2 e 3

Escopo 1: emissões diretas geradas durante o evento como, por exemplo, geradores de energia movidos a diesel ou gasolina, transporte usado pela organização e maquinários para efeitos especiais. 

Escopo 2: emissões indiretas de energia elétrica consumida pelo evento, mas geradas fora em usinas. Energia essa que abastece luzes, sons, equipamentos de transmissão ao vivo e telões.

Escopo 3: emissões geradas por tudo que está relacionado ao festival, mas que não é controlado diretamente por ele. Como, por exemplo, as emitidas pelo deslocamento do público, dos artistas e dos fornecedores. 

É importante que a gente saiba que o impacto vai existir, principalmente quando falamos do escopo 3, que não é diretamente controlável. Para Laura, a melhor opção seria zerar os escopos 1 e 2.

Isto é, trocar geradores a diesel por geradores biodiesel e comprar energia com selo de energia renovável, por exemplo. Dessa forma, a ação de tentativa de redução fica para o escopo 3.

Porém, as possíveis soluções não são baratas. Como o caso de um estande na edição de 2024 do Rock in Rio que para uma energia limpa, contratou uma energia renovável, um backup de bateria de lítio e um gerador a biodiesel. Para toda essa solução, o custo foi em torno de R$ 350 mil. 

Sabemos que só colocar um festival no mundo é caro e, como público, você pode ver isso refletido nos valores dos ingressos. Este ano mapeamos mais de 370 festivais no Brasil e a maioria deles não são os festivais gigantes e famosos como Rock In Rio ou Lollapalooza

Além disso, como citamos acima, os grandes impactos que os eventos causam no meio ambiente tem um custo alto para zerar ou reduzir. Não são todas as empresas e negócios que têm como prioridade gastar mais com isso.

E então temos os festivais pequenos, independentes e regionais, que impulsionam a música brasileira atualmente, mas enfrentam dificuldades para se sustentar. Não é barato sair do eixo Rio-SP, não é fácil achar patrocínio. Neste caso, a questão é: como esses festivais podem reduzir o impacto no meio ambiente? 

Para Kamila Camilo, fundadora de duas importantes iniciativas, a Creators Academy e o Instituto Oyá, o que falta é estratégia. A ativista climática aponta que os festivais menores poderiam se beneficiar com um planejamento em grupo e colaboração estratégica. Segundo ela, festivais que são da mesma região ou compartilham os mesmos valores poderiam se unir para negociar infraestrutura e serviços de forma mais econômica e sustentável. Dessa forma, custos seriam reduzidos e as chances de adotar práticas sustentáveis subiriam. 

Kamila ressalta ainda que, para promover uma sustentabilidade autêntica, os organizadores precisam equilibrar os valores do evento com as condições reais.

A gente precisa pensar em custo-benefício e pensar em ação climática como um investimento de longo prazo. Ter um festival mais resiliente é bom para o festival continuar existindo perenemente“, afirma a ativista. 

Laura Peiter concorda que para ter um evento sustentável, as ações precisam acontecer previamente. “A estratégia de sustentabilidade tem que caminhar junto com o planejamento do festival. Porque quanto antes você começar a pensar nessas soluções, mais fácil e mais barato. Acho que isso é a primeira coisa”, destaca.

Para a especialista em sustentabilidade, essa estratégia precisa olhar para todos os pilares do ESG (Meio Ambiente, Social e Governança). Segundo o PNUMA, Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, um evento sustentável precisa levar em conta os seguintes pontos: 

  • Reduzir ao máximo as emissões de gases como o CO₂ e compensar o que não dá para evitar;
  • Usar menos água e energia, aproveitando o que está disponível no local;
  • Gerar o mínimo de lixo e focar em reutilizar e reciclar, preservando a biodiversidade e os recursos naturais;
  • Fazer com que a galera local também ganhe com o evento, ajudando no desenvolvimento sustentável da região;
  • Escolher parceiros e serviços que respeitem práticas sustentáveis, como transporte, comida e hospedagem;
  • Conscientizar todo mundo — participantes, equipe e moradores — com ações claras e bem comunicadas sobre sustentabilidade;
  • Envolver autoridades, patrocinadores, ONGs e especialistas para fazer tudo acontecer conforme os princípios sustentáveis.

Para que um festival seja realmente sustentável, é preciso ir além da própria estrutura e considerar o impacto que deixa no território onde acontece. Um legado autêntico significa transformar e valorizar o local e as comunidades ao redor, não apenas usá-lo como palco. 

Criar um legado positivo já começa no planejamento do evento. Para Laura Peiter, garantir o bem-estar das comunidades locais e o acesso à infraestrutura adequada deve fazer parte do projeto desde o início. Ela destaca a importância de pensar em questões como transporte, fontes de energia renováveis e condições climáticas que possam afetar tanto o público quanto os moradores locais. Com isso, o evento minimiza o impacto ambiental e aumenta a segurança e o conforto de todos.

Valorizar o comércio e a mão de obra locais é uma das formas práticas de criar esse legado. Contratar fornecedores e colaboradores da região não só gera empregos como também impulsiona a economia local. Esse apoio direto ao território fortalece a relação entre o festival e a comunidade, criando um ciclo de benefícios que vai além do evento. Segundo Kamila Camilo, essa é uma forma de engajamento com o território que permite que o festival deixe um legado estruturante, ao invés de apenas gerar consumo passageiro.

Festivais que buscam um impacto positivo vão além de práticas temporárias como reciclagem ou contenção de resíduos e se comprometem com um impacto ambiental e social duradouro. Kamila defende que, para que isso aconteça, o festival precisa ter uma visão clara sobre território, justiça e legado, garantindo que suas ações deixem uma marca sustentável para a comunidade. Projetos como reflorestamento, educação ambiental e melhorias na infraestrutura local podem atender às necessidades reais da população e deixar um caminho de transformação para o futuro.

Deixar um legado significa que o festival não é só um evento, mas uma força positiva de transformação. Esse caminho cria um ciclo de confiança e apoio onde o público e as comunidades locais enxergam o festival como um agente de mudança e não apenas um consumidor de recursos. Laura Peiter acredita que, ao construir essas relações de confiança e compromisso, os organizadores ganham também em reputação, pois o festival passa a ser visto como um evento que realmente faz o que prega em termos de sustentabilidade.

Segundo Laura Peiter, transparência e coerência são essenciais quando o assunto é sustentabilidade. Ao assumir uma postura sustentável, um festival precisa agir conforme essa decisão e mostrar claramente quais são suas práticas sustentáveis e os respectivos resultados. Sem essa transparência e coerência, o evento pode cair no greenwashing, onde se promove uma imagem “verde” sem base real nas práticas sustentáveis.

Sustentabilidade não é uma agenda de marketing. Ela é uma agenda estratégica.” – Laura Peiter

Para a especialista no assunto, a sustentabilidade deve ser vista como estratégia central e de longo prazo, não apenas como uma ferramenta de promoção. Quando o mercado olha para práticas sustentáveis apenas como marketing é perdida a profundidade necessária para gerar um impacto real. Uma agenda sustentável estratégica considera metas, indicadores e impactos reais sobre o meio ambiente e a sociedade, ao contrário do marketing, que visa apenas atrair consumidores.

Quando existe o desejo autêntico de ser sustentável, não há problema nenhum começar com pequenos passos realistas, aumentando os esforços à medida que surgem mais oportunidades e recursos para agir. É uma jornada de crescimento honesta e contínua, onde cada ação busca realmente fazer diferença, mesmo que em pequenas doses no início.

Já o greenwashing é o oposto: acontece quando uma empresa ou evento apenas parece ser sustentável, usando uma imagem verde para ganhar simpatia do público, mas sem ações concretas e profundas. Nesse caso, trata-se de uma “fachada verde” que manipula o sistema, enganando o público sem o compromisso real com o impacto ambiental.

De acordo com Kamila, é normal que a curva dos early adopters – aqueles que adotam as mudanças, como as estruturais, primeiro – seja pequena. No entanto, se essa transformação não ganhar velocidade, quem resistir à mudança vai enfrentar sérias consequências em breve.

A falta de adaptação climática pode gerar graves consequências e colocar frequentadores de festivais e eventos expostos ao calor extremo ou a inundações. É um alerta sobre como tornar-se sustentável não é só uma escolha, mas uma necessidade urgente para preservar vidas e evitar tragédias.

O meu convite é se perguntar: ‘posso ser intencional e fazer uma coisa certa? Uma coisa bem feita?’ E começar com essa coisa, ser muito bom nela e no próximo ano implementar outra e, no outro ano, implementar outra. Eu acho que às vezes a gente tem o desejo de fazer tudo ao mesmo tempo o tempo todo. E nem sempre dá, sabe? Então como é que eu posso criar mesmo um roadmap de ação para ser mais verde? Eu acho que esse caminho começa dentro de casa.” – finaliza Kamila Camilo.

Promover a educação ambiental em festivais vai muito além de oferecer ecobags ou copos retornáveis. Kamila Camilo destaca que essa conscientização começa bem antes do evento, sendo integrada à comunicação com o público desde o momento em que são divulgados os artistas e as atrações. “Da mesma maneira que a gente divulga os artistas do headline para ajudar a vender ingresso, a gente pode botar energia na comunicação da educação prévia,” sugere Kamila, propondo uma comunicação que incentiva práticas sustentáveis, como trazer garrafas reutilizáveis e roupas confortáveis para melhorar a experiência.

Durante o festival, cada ponto de interação com o público se torna uma oportunidade educativa. Para Kamila, “todos os pontos de interação com essa pessoa na jornada do participante, é um ponto de educação.” Desde a comunicação visual até os coletores de resíduos, tudo pode ser projetado para orientar o público sobre boas práticas e a importância de cuidar do espaço. 

O Mapa dos Festivais se coloca como parte ativa nessa conversa, não apenas educando o público – que como já apontamos aqui, está atento – mas também contribuindo para que os festivais adotem uma postura mais consciente. Nosso compromisso é promover um diálogo que envolva todos: o público, os organizadores e as próprias comunidades locais, impulsionando uma mudança verdadeira e integrada.

Esse é o primeiro de uma série de conteúdos de uma editoria fixa do sobre o clima. Continue acompanhando o Mapa dos Festivais aqui e nas nossas redes sociais

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